terça-feira, 22 de maio de 2012

A Terra Plana

Todo mundo já ouviu a história de que foi Colombo que confirmou que a Terra era redonda, e que antes dele as pessoas achavam que a Terra era plana. Porém, isso é um mito! Desde a época dos gregos já se sabia que a Terra é redonda.

Mesmo para os povos antigos as evidências eram fáceis de serem encontradas. Por indução, se o Sol é redondo e a Lua é redonda, por que a Terra não seria? Mais diretamente, durante um eclipse lunar, é possível ver claramente que a sombra projetada pela Terra é redonda.

Nem mesmo a Igreja disputava essa interpretação. Santo Agostinho, por exemplo, sabia que a Terra era esférica, embora não acreditasse que houvesse gente morando do outro lado do globo. São Tomás de Aquino começa a sua Summa Theologica citando duas diferentes demonstrações de que a Terra é redonda.

"Mas e aquela história de que os marinheiros da época tinham medo de cair pela borda da Terra?" Bem, para quem não entende como a gravidade funciona, é possível ter esse medo mesmo com a Terra sendo redonda! Se a gravidade puxa sempre para baixo, então você cai quando chega no Equador:


Aparentemente, todo esse mito começou com a publicação de "As Vida e as Viagens de Cristóvão Colombo", que você pode ler integralmente no Google Books. O livro realmente cita que o senso comum era de que a Terra era plana. O problema é que todo mundo achou que esse era um livro de história, quando na verdade era ficção! (Concluí-se, portanto, que o autor desse livro foi um precursor do The Onion).

Hoje em dia ainda há quem acredite que a Terra é plana, desde os ingênuos que nunca tiveram acesso à educação, até os malucos que formam seitas como a Sociedade da Terra Plana. Talvez você conheça alguém assim. Na verdade, é bem possível que você acredite na Terra Plana. Sim, você que está lendo esse texto!

Se você acha que não acredita na Terra plana, então tente responder o meu teste: Suponha que você está usando um estilingue para arremessar passarinhos em porquinhos. Na ausência de atrito com o ar e outras formas de perdas dissipativas, qual a curva que o passarinho descreve em seu trajeto?


Se você respondeu que a curva é uma parábola, surpresa! Você acabou de assumir que a Terra é plana!

"Mas peraí! Como assim?! Foi isso que meu professor ensinou!". Pois é, sempre é bom ter uma dose de ceticismo quando te ensinam alguma coisa. Na verdade, a prova de que a trajetória é uma parábola requer a existência de uma força gravitacional do tipo F=mg, onde g é uma constante de aproxidamente 9.81 m/s2.

A pegadinha é que esse g não é uma constante! Ele varia com a altura, e, levando isso em conta, a curva não é mais uma parábola. Porém, se você assumir que a Terra é um plano infinito, aí sim a curva é uma parábola, porque nesse caso g é uma constante independente da altura.

E como provar que o g é realmente constante para uma Terra plana? Existem várias maneiras: se você souber um pouco de cálculo, pode usar o método do guerreiro, que envolve várias páginas de lutas contra integrais duplas. Se você for um mestre do cálculo, pode tentar o método do mago, que resolve com poucas contas, mas requer o uso de teoremas mágicos. Agora, se você não souber cálculo, o jeito é apelar para método do clérigo: acredite em mim e pule o quadro azul abaixo :)

O Método do Guerreiro

Antes de começar, convém lembrar a lei da gravidade de Newton, que é proporcional às massas e inversamente quadrática com a distância entre elas:


Como a lei tem simetria radial, as contas ficam mais fáceis se explorarmos essa simetria. Vamos calcular qual é a atração gravitacional causada por um disco de raio R e espessura infinitesimal, composto de materia uniforme com densidade σ, sobre um passarinho de massa mP que esta a uma altura h.


Nós vamos picotar o disco em pedacinhos de massa dm e integrar sobre todos os pedacinhos. Como as dimensões de cada pedacinho são infinitesimais, então eles podem ser considerados pequenos retângulos, onde um dos lados vale dr, e o outro vale um pequeno comprimento de arco. Um comprimento de arco é igual ao raio vezes o ângulo, logo esse lado vale r.dϕ . A massa do pedacinho, então, é a densidade vezes a área: σ.r.dr.dϕ.

Além disso, se eu tenho o raio r e a altura h, por Pitágoras eu sei quanto vale d2. A força total sobre o pedacinho é:


Antes de continuar, vamos decompor a força total em componentes radial (Fr) e vertical (Fh). Agora a simetria do problema se mostra útil, basta notar que para cada dm, tem um outro dm numa posição simétrica, do outro lado do disco; e nesse dm espelhado, o Fr vai ter o mesmo módulo e direção, mas sinal oposto. Então todos os Fr vão cancelar, e a força total sobre o passarinho vai ser apenas a soma dos Fh de cada dm.

E quanto vale o Fh? É a força total F vezes o cos θ, que por sua vez é o lado adjacente pela hipotenusa. Logo:


Para calcular o Fh total, é só integrar para o ϕ variando de 0 a , e para o r variando de 0 a R:


Todo mundo é constante em relação a ϕ, então dá pra jogar pra fora, e a integral em  fica simples:


Para continuar, uma mudança de variável:


O meio joga pra fora e cancela com o dois, o resto é um monômio simples, para integrar você soma um no expoente e passa dividindo:


A ultima expressão é a fórmula final da força gerada por um disco uniforme. Por fim, basta notar que o plano é o limite do disco quando o raio vai para o infinito:


Se o R vai para o infinito, então a primeira fração vai para zero, logo:


Nós estamos interessados no caso em que h é positivo, logo a fração simplifica e chegamos na forma final da força devida a um plano:


Como esperado, a força F não depende da altura h!


O Método do Mago

Ao invés de usar a lei da gravidade de Newton, podemos usar a lei da gravidade de Gauss, que diz que a integral do campo gravitacional sobre uma superfície fechada é proporcional a massa contida dentro dela:

Essas duas leis são equivalentes, pode-se usar uma para provar a outra. Mas em alguns casos a lei de Gauss é mais prática, especialmente se você puder bolar uma superfície que explore as simetrias do problema. No nosso caso, a superfície mágica é um cilindro centrado no plano, com as bases paralelas a ele:


Antes de mais nada precisamos da massa dentro da superfície. Vamos chamar a área da base do cilindro de A. Como o plano tem densidade σ, entao a massa dentro da superfície fechada é M = A.σ.

Nós já vimos antes que, pela simetria radial, todas as forças resultantes são perpendiculares ao plano. Na lateral do cilindro, todos os elementos de área dA são normais à lateral, logo são perpendiculares às forças, e portanto o produto escalar deles dá zero.

Além disso, também há uma simetria em relação à translações no plano, por isso todas as forças atuando a uma mesma altura são iguais entre si. Dessa maneira, a integral de superfície em cada base do cilindro vale esse valor constante (chamemos de F) vezes a área A.

Juntando tudo, temos:


Esse é o mesmo resultado do método anterior, mas com bem menos contas!

Mas se na Terra redonda a curva não é uma parábola, então que curva ela é? Bem, se você assumir que a Terra é uma esfera perfeita, homogênea, sem campos magnéticos, e assumir que não há atrito com ar e que ninguém está girando, então a curva correta é uma elipse.

Para quem leu o Principia, este é um resultado intuitivo. Na Proposição 71 do Livro 1, o Newton demonstra que a força resultante da atração por uma esfera homogênea é a mesma força de quando você concentra toda a massa da esfera num ponto material em seu centro. Daí o problema se reduz à atração entre dois pontos materiais, que sabemos ser uma elipse.

Esse raciocínio também serve para responder a uma dúvida comum da criançada: se a gravidade da Terra puxa tudo para o centro, por que os satélites entram em órbita ao invés de cair? A resposta mais imediata é que na verdade tudo que você joga pra cima entra em órbita, mas algumas órbitas são tão excêntricas que o objeto bate de volta na superfície da Terra.


Eu não gosto muito da maneira que ensinam Física no Brasil (o Feynman também não). Felizmente, hoje em dia você sempre pode remediar a sua formação usando os recursos online, como a Wikipedia e a Khan Academy!

6 comentários:

  1. Hmmm... Vou ter que pensar sobre isso. Uma trajetória genérica é na realidade alguma cônica, pode ser uma elipse, pode ser uma hipérbole, pode ser uma parábola num caso limite. Trajetórias hiperbólicas são características de corpos que passam muito rápido por algum outro mais pesado, não sei em que condições um corpo lançado da superfície da Terra poderia traçar uma hipérbole. Se não for algo extremo e.g. precisa superar a velocidade de escape, então seria possível traçar parábolas mesmo considerando a curvatura do campo... Ou não, talvez não seja possível fazer uma transição de trajetórias elípticas pra hiperbólicas, não tenho certeza.

    De qqer forma, se vc joga um objeto exatamente pra cima ele ainda traça uma parábola, mas sem largura nenhuma! :)

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  2. Tô lendo a entrevista do tiozinho que defende a teoria da Terra Plana e rindo da maluquice toda:

    "Qual parte da Terra ser redonda não faz sentido para você?
    - Costumo ir à praia e olhar para o oceano. Ele parece bem plano... "

    Hahahahaha X-D

    http://frequenciaufologica.blogspot.com.br/2011/06/terra-e-plana-segundo-o-cientista.html

    Ele precisa ler seu post. ;-)

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  3. Opa, tudo bom? Faz tempo que tu não posta! Me divirto com tuas idéias! :)

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  4. Legal!

    Faltou só citar o Eratóstenes (o do crivo) que calculou com bastante precisão a circunferência da terra há mais de dois mil anos.

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  5. Salve RicBit! Obrigado, "divinal guru"!

    Eu nunca tinha parado para pensar, mas sempre desconfiava de algo errado na parábola - tava muito "cartesiano"/"euclidiano" aquilo... E por que quando a gente lançava com velocidade suficiente uma pedra, ela entrava em órbita (ou seja uma elipse), mudando de parábola para elipse? Ora, ora... agora pude ver, com clareza de cristal: não mudava coisa nenhuma, era uma elipse em baixa velocidade e continua sendo em velocidade orbital. (Claro que velocidade de escape deve ser outro "babado", imagino. Ou não.).

    Abraços!

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