terça-feira, 26 de junho de 2012

Estimule sua Criatividade #1

Um tempo atrás me perguntaram se existe algum método para ser mais criativo. Isso é bem difícil: para testar se um método funciona ou não, você precisaria medir a criatividade antes e depois de usar o método, e ninguém sabe como mensurar criatividade.

Dito isso, eu conheço dois truques que parecem funcionar bem. Neste post eu vou falar do primeiro método, e pra isso eu vou contar um história que aconteceu comigo lá nos antigos tempos de colégio técnico.


A Federal


Em 1991 eu comecei o curso técnico em eletrônica na ETFSP, popularmente conhecida como a Federal (e que hoje em dia é IFSP). A primeira coisa que nos passaram foi a lista de material para comprar. Além dos básicos livros e cadernos, a lista também incluía itens mais específicos, como caneta nanquim, normógrafo e calculadora científica.

A calculadora foi um problema. Naquela época, calculadoras científicas eram caras (ou melhor, até hoje em dia elas são caras). Como eu não tinha condições de comprar uma, resolvi encarar o desafio de fazer o curso usando só uma calculadora de quatro operações.

O primeiro ano foi fácil: no início do curso, o único componente usado era o resistor, e contas com resistores você consegue fazer só com as quatro operações. No segundo ano apareceram os capacitores, e aí a coisa complicou: agora as contas envolviam exponenciais e funções trigonométricas, que a minha calculadora simples não fazia.

O que fazer então? Dado que eu não conhecia ninguém para me emprestar uma calculadora científica, nem tinha dinheiro para comprar uma, o jeito foi apelar para a herança do meu avô.


A herança do meu avô não era dinheiro. Melhor que isso, era conhecimento! Mais especificamente, era uma estante enorme que ia de parede a parede, com um monte de livros sobre todo tipo de assunto. Os livros eram antigos, da década de 60, e iam desde o Tesouro da Juventude até a Gramática do Jânio Quadros.

O livro que me salvou foi uma curiosa coleção de Matemática para Seminaristas. Eu não sei exatamente por que um padre precisa saber matemática, mas o fato é que o livro era bem completo, começava com produtos notáveis e avançava até o Cálculo. E no meio do caminho, tinha o truque que eu precisava para usar minha calculadora!

A Exponencial


Os problemas que caíam na prova eram mais ou menos assim: dado o circuito RC-série abaixo, calcule a tensão no capacitor após 2 segundos.



No colégio técnico você não precisava resolver a equação diferencial. Ao invés disso, eles davam a fórmula final; você só precisava decorar e aplicar:


O meu problema era a exponencial, que só tem em calculadoras científicas. Mas, usando o livro dos seminaristas, eu descobri a fórmula que resolveu meu problema: a expansão em série de Taylor:


Parece complicado, mas é simples calcular essa fórmula numa calculadora de quatro operações, desde que ela tenha os botões de memória (M+, M-, MC e MR). No exemplo dado, em que eu preciso calcular exp(-0.2), a sequência de botões é curta:

C MC 1 M+ . 2 M- × . 2 ÷ 2 = M+ × . 2 ÷ 3 = M- × . 2 ÷ 4 = M+ MR

Com 29 toques eu tenho o valor de 0.818, correto com três casas decimais (e o professor só pedia duas). Se você tiver os dedos ágeis, praticamente não leva tempo!

Esse método também é bom para calcular senos e cossenos, que aparecem no cálculo de ângulos de fasores e no cálculo do fator de potência. Mas tem um caso onde o método não funciona...

O Logaritmo


Às vezes, o que caía na prova era o problema inverso: dado aquele mesmo circuito RC-série, quanto tempo leva pro capacitor ficar com metade da tensão da fonte? Nesse caso, a conta depende de log(0.5), e não tem logaritmo na calculadora de quatro operações.

Pior, nesse caso o livro também não ajudava. A única fórmula que tinha no livro era a seguinte:


Se você tentar usar essa fórmula na calculadora, logo vai perceber que ela não é prática: são necessários muitos termos para conseguir a precisão de duas casas decimais desejada. Olhando as fórmulas, a velocidade de convergência é clara: os coeficientes da exponencial caem com a velocidade do fatorial, enquanto que os coeficientes do logaritmo caem com a velocidade da série harmônica, que é muito mais lenta.

Hoje em dia, eu provavelmente usaria o método de Newton-Raphson para calcular o logaritmo. Mas eu não entendia de cálculo numérico, então nem sabia que esse método existia. Por isso, eu tive que apelar. Ao invés de decorar uma fórmula, eu decorei quatro números:


É fácil decorar quatro números de 7 dígitos né? Certamente todo mundo sabe pelo menos quatro números de telefones de cabeça, e a dificuldade é a mesma. Com esses quatro números, eu conseguia calcular tudo que queria! Precisa de log(0.5)?


Precisa de log(4.2)? Beleza:



E se for log(2.6)? Ops, aí não dá, 26 tem um fator primo 13 que não está na minha lista. Mas eu posso aproximar:


O resultado não é exato, mas tem precisão de duas casas. Quem precisa de calculadora científica, afinal?

Isso foi sorte, ou sempre é possível aproximar? Na época eu tinha uma intuição que sempre dava, mas hoje em dia eu consigo demonstrar que isso é verdade! A demonstração está na caixa azul, pule se você não sabe teoria dos números:

A demonstração usa diretamente o teorema da equidistribuição de Weyl: o conjunto das partes fracionárias dos múltiplos inteiros de um número irracional qualquer é denso em [0,1). Ou seja, para qualquer irracional α e real q, onde 0 ≤ q < 1, e para qualquer ε positivo dado, sempre existe um inteiro n tal que a fórmula abaixo é verdadeira:


Com um pouquinho de álgebra é fácil estender o domínio de [0,1) para todos os reais. Imagine que escolhemos um real x qualquer, tal que x=p+q, onde p é a parte inteira e q é a parte fracionária. Então podemos partir da equação anterior:


Note que o piso de  é um inteiro, e p é um inteiro. Vamos chamar de m a diferença dos dois:


Ou seja, eu posso escolher qualquer irracional α e qualquer real x, que sempre vai existir um par de inteiros m e n que satisfazem a inequação. Já que eu posso escolher qualquer número, então escolho α e x como abaixo:


Note que α é irracional, portanto podemos usar nossa inequação:


Ou seja, sempre podemos aproximar o log de um real y qualquer como a soma de múltiplos inteiros de log(2) e log(3), nem precisava ter decorado o log(5) e log(7)!

Infelizmente, essa demonstração é um exemplo de prova não-construtiva: ela garante a existência dos inteiros m e n, mas não fala como achá-los! No fim, você precisa descobrí-los pela intuição, exatamente como eu fazia :)

A Criatividade


Eu poderia terminar o post com uma moral do tipo "se a vida te deu limões, então arranje uns bastões de cobre e faça uma bateria", mas tem uma lição mais importante! A Marissa Mayer cantou a bola em uma entrevista de 2006: a criatividade adora restrições, especialmente se acompanhada de um desprezo saudável pelo impossível.

Tente se lembrar de alguma coisa que você viu e achou muito criativo. Que tal a artista que fazia retratos usando fita cassete? O cara que faz arte usando frutas? O doido que reescreveu The Raven, do Poe, de modo que o número de letras do poema batesse com os dígitos de pi?

Todos eles são exemplos onde o autor se auto-impôs uma restrição (de forma, de conteúdo, de matéria-prima). Se você quer expandir sua criatividade, impor limites costuma ser mais efetivo que retirá-los. Eu mesmo sempre tive problemas quando me pediam uma redação "com tema livre", era muito mais fácil quando o tema tinha alguma restrição.

E isso não vale apenas para arte, vale para computação também. Tente fazer aquele seu programa usar menos memória, menos CPU, tente programar a mesma coisa em menos tempo: tudo isso vai te forçar a usar soluções mais criativas.

Eu ainda tenho outro truque para estimular a criatividade, mas esse fica para o post seguinte :)

(Agradecimentos ao povo do Math Stack Exchange pela ajuda na demonstração)

30 comentários:

  1. Senti na prática esta história de "restrições" quando eu estava fazendo os desafios dos 30 dias...

    As vezes é muito difícil bolar um desenho do nada, sem nenhuma temática específica. E no desafio cada dia eu tinha que postar um desenho para uma determinada resposta, e com isso a ideia fluía fácil. ;-)

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  2. Eu sou professor no IFSP hoje, e posso afirmar que os alunos que eu tive até agora são em sua maioria esmagadora ao contrário do que foi, infelizmente... Reclamam que tem contas para fazer, que não sabem usar a calculadora, que não sabem o que é log, potência. Fazer essas "jogadinhas" com log/log para log-log é um SUFOCO.

    De qualquer forma, vou levar esse texto para discutir com alguns professores.

    Abracos

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    1. Na minha época também tinha um tanto de alunos reclamões, então nesse ponto não mudou muito :)

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  3. Sobre a redação de tema livre, Eu aprendi muito com o Ronald Claver, escritor e meu professor de portugues no colégio! E as técnicas dele eram exatamente essas: criar restrições e partir delas. Sortear palavras e juntá-las pra formar um tema era minha técnica preferida, deu até origem ao meu conto mais "aclamado" na época do colégio: http://blog.girino.org/2007/10/17/girinoblogentry_2007_october_17_195349_brt/ . Dá pra ver que a estória todo começou com uma "guerrinha de restrições", eu forçando a critividade dele por molecagem e ele aceitando o desafio de forma criativa, e devolvendoa molecagem!

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  4. Muito legal, tanto o artigo quanto os links - o Tesouro da Juventude é um verdadeiro tesouro do conhecimento científico de 90 anos atrás! Aquelas respostas são muito engraçadinhas! :)

    Ao começar a ler o texto, eu ia comentar que a pobreza estimula a criatividade, e por isso o povo brasileiro é um povo muito criativo, pois precisa dar um jeito de resolver os problemas com poucos recursos. Mas a palavra "restrições" é mais geral e se aplica ainda melhor; perfeitamente!

    E seus comentários finais também estimulam a pensar... "é mais fácil com restrição". Vou tentar aumentar minha produtividade restringindo-me de alguns recursos!

    Valeu o artigo!

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  5. Kudos (como sempre), Ricbit! Lembro-me de quando você me falou sobre escrita constrangida (com restrições) e o resultado foi a história do meu filho Max:
    http://muriloq.com/blog/2010/01/escrita-constrangida/

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    1. Eu fiz um monte desses contos com googlism, mas ainda não coloquei online. Vou tentar fazer isso mais tarde :)

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  6. Alias, um colega da computação escreveu um livro (extensão da tese dele de mestrado em letras, acredito eu) sobre um tipo bem especial de restrições que alguns autores usam, que o ricbit vai gostar: Matemática! :-D

    http://www.guiaentradafranca.com.br/agendaG.php?idUrl=9053

    a tese dele, que é só sobre 2 autores, está aqui:
    http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-8BQF7G

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  7. Muito, muito bom!

    Fiquei pensando no seguinte, quantas teclas eu preciso pressionar para resolver e^x com precisão de n casas decimais usando uma calculadora de 4 operações com 1 registro? Não fiz as contas, mas não é difícil generalizar. E com menos operações, apenas adição e subtração?

    Pensando bem, acho que dá um bom exercício para a disciplina de Algoritmos e Lógica :)

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    1. Boa pergunta, eu também não sei não! Depois vou tentar fazer a conta.

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    2. Fiz a conta. Se eu não errei nada, o número de bits no n-ésimo passo da aproximação da exponencial por Taylor é O(n log n).

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  8. Bacana! Me fez lembrar da época que programava em BASIC para o CP 400 e tentava adaptar os jogos do MSX para ele. Aí vc. tem que se virar nos 30.

    Dizem que Einstein disse que "uma mente que se abre nunca se fecha novamente". Mas para abrir uma mente, a vida nos dá desafios que conseguimos ultrapassar, mesmo com poucos recursos. É a nossa habilidade com esses desafios e essas condições que fazem toda a diferença.

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    1. Eu tive a mente aberta quando era bebê, tenho a cicatriz até hoje!

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    2. Hehehehe... a minha não é exatamente aberta, mas também não é totalmente fechada. Para mim, a mente das crianças é totalmente aberta, e a sociedade teima em fechá-la.

      Isso me lembra uma história. Minha esposa fez estágio em uma escola (ela se formou em Letras). Na escola ela ouviu que uma aluna da pré-escola pegou um desses desenhos para colorir que tinha uma maçã, que ela coloriu... de azul!

      Ao invés de estimular a criança, o que a "tia" fez? Disse que estava "errado" e pediu para a criança pintar a maçã de vermelho. Mas qual o problema com uma maçã azul?

      Esse é o grande desafio da sociedade moderna: estimular a busca pelo conhecimento, a criatividade na solução dos problemas e a imaginação para criar e construir coisas novas.

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    3. Muito interessante. Isso me faz lembrar de que, como escritor de ficção científica, aprendi a ser um colecionador de ideias, por mais absurdas que elas pareçam. Assim, jamais imponho limites à minha imaginação.

      Isso tem um efeito colateral interessante: sonhos malucos. Os sonhos normalmente são malucos, mas alguns extrapolam, como da vez em que Darth Vader apareceu na procissão da quaresma ou quando fiz um passeio em Júpiter.

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  9. Olá, Post muito legal. Parabéns. Falando em restrições, olha que legal, o menor programa do mundo que joga xadrez! 1433 caracteres!

    http://home.hccnet.nl/h.g.muller/max-src2.html

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    1. Legal, eu costumava brincar de escrever programinhas em duas linhas de MSX BASIC:

      http://www.ricbit.com/mundobizarro/twoliners

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  10. nossa, eu nao sei se conseguiria sobreviver sem minha HP...
    Parabens para voce por ter usado nao apenas a criatividade, mas também a determinacao!

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  11. "Parece complicado, mas é simples calcular essa fórmula numa calculadora de quatro operações"

    E eu que mal sei fazer regra de três! Hahahahahaha.
    Belo texto sobre perseverança!

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  12. Ricardo,
    Você fez me lembrar o problema que passei para fazer um relógio analógico no computador durante o curso técnico. Eu perguntava aos professores de matemática como fazer uma linha girar em torno de um ponto, mas eles não sabiam como me ajudar, afinal nunca aplicaram as fórmulas no mundo real.

    Um dia eu estava na biblioteca lendo a Enciclopédia Prática da Informática (aqueles livros de capa preta dura da editora Abril) e encontrei a analogia que abriu minha mente: a explicação de seno e conseno como a sombra de corda no chão e numa parede.

    No mesmo dia cheguei em casa e fiz um relógio analógico:
    http://acassis.wordpress.com/2009/03/29/nostagia-ponto-com/

    Parabéns pelo post, espero que você continue escrevendo, sua posts são motivadores.

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  13. Delícia de post, RicBit. Também fiz curso técnico numa "Federal" (no caso a do Rio, a Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca, depois CEFET-RJ, e hoje deve estar virando algum IF também), o que me ajudou tanto depois nas fases seguintes de Engenharia e Informática (também aprendi a jogar pebolim lá, mas isso não vem ao caso...). E minha paixão por calculadoras vem dessa época - eram a coisa mais geek que se podia ter nos 70's, época pre-iPhone. Só que consegui fazer minha mãe comprar uma programável (Texas TI-58, uma maravilha). Desconfio que fiquei menos inteligente/criativo que você por que ganhei uma sofisticada em vez de uma quatro operações, hehehe. (Curiosidade: como sempre fui "mulher da pulga", aprendi em livros mais antigos como "armar" a conta de raiz quadrada, para conferir no papel... os resultados da calculadora! Por acaso você passou por isso? Ou não é tão doido?...)

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    1. Eu acho que aprendi o algoritmo longo de raiz quadrada em aula!

      http://www.homeschoolmath.net/teaching/square-root-algorithm.php/

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  14. Muito bom o seu post! Aliás o blog inteiro tá o máximo.
    Eu também estudei em escola técnica e tive uns bons problemas com falta de calculadora e usei muito suor e noites em claro pra conseguir resolver meus cálculos, tanto que até hoje uso esses mesmos "macetes" na faculdade!

    Adorei tudo aqui!

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  15. Olá, cheguei a sua pagina por obra de pesquisa sobre um tema não coincidente com seu blog, e li o post acima.
    Achei interessante sua história. Particularmente a parte sobre a solução que o salvou nos estudos: O livro "Matemática para Seminaristas".
    Pesquisei na internet, mas infelizmente, não conseguir encontrar nenhum resultado. Por isso, gostaria que vc me enviasse, se possível, informações sobre a editora, edição, ano e autor, para oliver.reo@gmail.com.
    atenciosamente,

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    1. Eu também não lembro o nome exato, esses livros estão em outra cidade agora.

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  16. Muito bom o seu post! Me fez lembrar meus tempos de Cefet, isso em 97.

    Abra;o

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