domingo, 24 de outubro de 2010

O Altar de Apolo

Quando pensamos na influência da religião na ciência, usualmente o que vem à mente é o obscurantismo medieval, como o julgamento do Galileu, ou então as cruzadas modernas contra a evolução e a pesquisa com as células-tronco. Mas também houve episódios onde a religião ajudou a ciência, e deles o meu preferido é o do Altar de Apolo.


Consta que, por volta de 400 aC, uma grande peste se espalhou pela cidade grega de Delos. Ela foi tão intensa, que estima-se que um quarto da população local tenha morrido. Preocupados com a saúde da população, os governantes resolveram consultar a única pessoa que poderia saber a causa da peste: o Oráculo de Delphi.

No Oráculo, as perguntas eram feitas para a sacerdotisa de Apolo, que entrava em contato diretamente com o Deus para solicitar a resposta. Diz-se que o Oráculo era construído sobre uma fenda que exalava gases alucinógenos, e isso ajudava no contato com o divino.

A sacerdotisa disse que a peste era causada pelo descontentamento de Apolo, e o único jeito de deixá-lo alegrinho novamente era com uma oferenda: eles deveriam duplicar o altar de Apolo, que era um grande cubo de mármore.

Os governantes então mediram as dimensões do cubo, duplicaram as arestas e fizeram o novo altar. Porém, mesmo seguindo à risca a orientação, a oferenda não funcionou, e a peste continuou matando todo mundo! Revoltados, eles foram tirar satisfação com o Oráculo: como assim a gente segue sua recomendação e não dá certo?


O Oráculo, que de bobo não tinha nada, explicou o que aconteceu: quando eles duplicaram cada aresta, o volume do altar cresceu oito vezes! Na verdade, o que eles deveriam ter feito era duplicado o volume, e não a aresta.

Isso deixou os matemáticos da época perplexos. Para duplicar o volume do cubo mantendo as proporções, a aresta precisa ser maior que a original por um fator igual à raiz cúbica de dois. Agora, se o Apolo é tão chato a ponto de não aceitar duplicar a aresta, ele também não iria aceitar uma aproximação como 1,26. Teria que ser o valor exato.

Mas como construir o valor exato usando as ferramentas disponíveis na época, ou seja, régua e compasso? Esse foi um dos grandes problemas da antiguidade, e a resposta correta só foi aparecer quase 2200 anos depois: na verdade, é impossível construir esse número só com régua e compasso.

Mas não pense que os gregos desistiram! Quando viram que esse caminho da régua e compasso não estava dando frutos, resolveram apelar para outros métodos. O mais impressionante deles foi criado por Arquitas, um general grego que era amigo pessoal de Platão.

O raciocínio de Arquitas foi o seguinte: régua e compasso são ferramentas para resolver problemas no plano; como nosso problema é espacial, provavelmente precisamos de ferramentas que operem no espaço. Arquitas tinha uma visão espacial assombrosa, e conseguiu construir a raiz cúbica de dois usando a intersecção de três sólidos.

Para entender a solução de Arquitas, vamos precisar de computação gráfica e geometria analítica. O primeiro passo é construir o segmento com o lado do cubo (digamos que o comprimento seja a). Centrados em um dos vértices do segmento, nós desenhamos três círculos perpendiculares de raio a, paralelos a cada um dos eixos coordenados:


Nós vamos usar cada um dos círculos para construir um sólido diferente. Primeiro, pelo círculo perpendicular ao Ox nós traçamos um cone que parte da origem:


A equação desse cone é a abaixo (se não é óbvio pra você que isso é a equação do cone, eu coloquei no final do post um quadro azul com as demonstrações).


O próximo sólido é um cilindro, construído estendendo o círculo perpendicular ao eixo Oz:


A equação desse cilindro é a abaixo:


Por fim, nós pegamos o círculo restante e o rotacionamos em torno do eixo Oz, criando um toróide:


A equação desse toróide é a abaixo:


O insight do Arquitas é que essas três superfícies se encontram exatamente no ponto que queríamos!


Vamos verificar que isso é verdade, usando as equações das superfícies:



Tal como queríamos! A parte impressionante disso é pensar que o Arquitas concebeu essa solução sem usar computação gráfica e sem saber geometria analítica. Na verdade, ele nem sabia escrever equações: mesmo uma coisa simples como o sinal de igual só foi inventado 1900 anos depois!

Se você quiser renderizar em casa a solução do Arquitas, pode usar os meus scripts de povray abaixo (para renderizar equações implícitas é só usar o comando isosurface):

Scripts povray com a solução do Arquitas

Por fim, o quadro azul para quem não sabe como derivar as equações implícitas. Enjoy!

Cone

O cone é formado por um contínuo de círculos no plano yz. Portanto, a equação de cada círculo deve ser da forma:


Mas o círculo em x=0 tem raio 0, e em x=a tem raio a. Logo o raio é igual a x.


Cilindro

O cilindro é um contínuo de círculos no plano xy, todos com o mesmo raio a, e centrados no ponto (a,0,0). O z nesse caso é qualquer, então a equação é:


Toróide

Eu não achei jeito fácil de derivar o toróide, então vai o difícil mesmo. Vamos construir a superfície como a soma de dois vetores, um que gira no plano xy, e um que gira nos planos perpendiculares a esse. A equação paramétrica do círculo base do toróide (visto de cima), é:


Cada ponto desse círculo é o centro de um outro círculo, no plano perpendicular formado pelo y e por esse mesmo vetor que aponta pro centro. Daí, a equação desse segundo círculo é:


A equação paramétrica final é a soma dos dois vetores. Já separando em coordenadas:


Agora nós elevamos ao quadrado e somamos x e y:


Podemos elevar z ao quadrado e somar com o anterior:


Opa, agora é só elevar ao quadrado de novo e substituir:


QED. Se alguém souber de algum jeito mais fácil, me ensine :)